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A “Bíblia dos Escravos” e o silêncio imposto pela fé nas colônias britânicas

Durante os séculos XVIII e XIX, nas colônias britânicas do Caribe e da América do Norte, a escravidão foi sustentada não apenas pela força e pelos castigos físicos, mas também pelo controle da fé.

Um dos exemplos mais marcantes desse mecanismo foi a produção da chamada “Bíblia dos Escravos”, uma edição censurada das Escrituras organizada pela Igreja Anglicana e publicada em 1807, em Kingston, Jamaica, com o objetivo explícito de evitar revoltas entre pessoas escravizadas.

Essa versão continha apenas cerca de 300 dos mais de 1.100 capítulos bíblicos. Textos que falavam sobre libertação, dignidade, justiça, igualdade ou resistência foram removidos.

Foram eliminados, por exemplo, o relato da libertação dos hebreus do Egito, as denúncias dos profetas contra a opressão dos pobres e passagens do Novo Testamento em que Jesus anuncia liberdade aos cativos.

Em contrapartida, foram mantidos e enfatizados trechos que reforçavam submissão, obediência e aceitação da servidão.

A lógica era clara: ao moldar o texto sagrado, moldava-se a consciência. Se a Bíblia é referência moral e espiritual, controlar sua versão significava controlar a interpretação do mundo, o lugar de cada um e as possibilidades de futuro. Nos engenhos e plantações, ensinava-se que o sofrimento era vontade divina, que servir ao senhor terreno era parte da ordem estabelecida e que a recompensa viria somente após a morte.

A fé, assim, deixava de ser fonte de consolo e esperança para se tornar ferramenta de domínio social. Entretanto, nem todo controle é absoluto. Mesmo sob vigilância, pessoas escravizadas reinterpretaram, adaptaram e ressignificaram práticas religiosas, criando formas próprias de espiritualidade como espaço de resistência silenciosa. Reuniam-se discretamente, cantavam, compartilhavam histórias, reconstruíam sentidos e encontravam força naquilo que não podia ser confiscado: a interioridade. Nesse contexto, a luta pela liberdade ocorreu também no plano simbólico, na disputa por narrativas e significados.

Hoje, exemplares da “Bíblia dos Escravos” estão preservados em museus e bibliotecas na Inglaterra e nos Estados Unidos, sendo estudados como documentos fundamentais para compreender como a religião pode servir tanto para legitimar sistemas de opressão quanto para inspirar libertações profundas, conforme a interpretação que se faz dela. A história dessa edição revela que a escravidão não tentou aprisionar apenas os corpos, mas também as consciências.

E, ainda assim, onde tentaram impor silêncio, nasceram memórias e resistências que atravessaram séculos.

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